sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O mundo é um moinho.

Por: Hector Valente Franco

“… quando notares estás à beira do abismo, abismo que cavastes com teus pés”…
Cartola, o gênio do morro que esculpiu estes versos não poderia imaginar, mas mandava, sem querer, um recado grave para a gente.

Quando eu digo “a gente”, e para isso peço licença aos incontáveis leitores do Acontecendo Aqui em todas as partes do mundo, me refiro aos que por nascimento ou por opção, vivem na Velha Desterro, a Floripa dos sonhos de tanta gente. Mas pode valer para muitos lugares, também.
Então, vou entrar em um tema que poderá gerar opiniões inflamadas e todas serão bem-vindas, ajudem a discutir o assunto.
Vamos lá, entender o “abismo” que estamos cavando com nossos próprios pés…
Está no próprio título da canção. O mundo é um moinho. E sem dó nem piedade, vem reduzindo a pó boa parte das certezas que se tinha em termos de vida nas cidades.
A noção antiga do que significa morar, trabalhar, consumir, se locomover, conviver e preservar, morreu muito antes do eterno Niemeyer, mais ou menos na época em que caducou a arquitetura modernista que o revelou e consagrou.
Não se engane, a ideia de civilização está na cidade, na urbe, na polis e em nenhum outro lugar.
Estado, federação, não conseguem chegar nessa discussão.
Por isso muitas cidades já se antenaram disso e resolveram abordar a questão com a seriedade necessária.

Em Florianópolis percebo, sem apontar o dedo para ninguém, e sim para o nosso pensamento coletivo, uma receita de soberba, saudosismo, negligência e falta de ousadia.
Soberba, por que fomos acostumados a pensar que nosso “pedacinho de terra perdido no mar” (hoje é dia de samba-canção, marcha-rancho e hífens…) é o máximo de beleza que a natureza conseguiu reunir. Assim, tudo já estava meio pronto, isso aqui é demais, urrú, bora prá praia, comer tainha escalada, tomar uma geladinha, se quéx quéx, se não quéx, dix…
É bom? Olhólhó… É bom demais. Mas não basta. Muita gente veio de fora, nossas referências podem e devem mudar. Repensar e admitir que não somos o máximo é o primeiro passo no caminho para sê-lo.

Boa parte dessa soberba se encaixa direitinho com o saudosismo. O maior exemplo disso, entre outros (sei que agora vou apanhar…), é a ponte Hercílio Luz. O antigo governador, que sonhou com o que se chamaria Ponte da Independência, não projetou um cartão postal. Seu sonho era consolidar a cidade como capital, pois outras cidades alegavam que seu isolamento prejudicava os negócios do estado.
Recentemente os jornais de Santa Catarina publicaram as declarações do engenheiro Khaled Mahmoud, da Bridge Technology Consulting, dizendo que a ponte pode “entrar em colapso” a qualquer hora. Pessoal, a tradução correta para “collapse” é “desabar”. A ponte Hercílio Luz está fechada desde 1982. 30 anos. Mais da metade da população da cidade nunca passou por esse equipamento de mobilidade urbana. Pois é. A Hercílio Luz não é um cartão postal. Foi construída para que cem por cento da população possa cruzá-la para ir trabalhar, ir para casa, viver. Não podem. Mas poderão vê-la desabar. Uma nova ponte, moderna, projetada para os próximos 100 anos (quanto tempo a estrutura e os materiais de uma ponte restaurada poderão suportar? Quem garante?) poderia substituir a atual, mais rápida e economicamente e um lindo museu poderia preservar sua história como o legado de uma época que passou, como aconteceu com Wembley, em Londres. Muito já se discutiu, se projetou e se gastou para recuperá-la em nome de uma única coisa. Saudosismo.
Saudosismo que esconde nossa negligência.
“Não dá”, “é difícil” e “vamos ver” são frases muito escutadas entre nós. Marinas e atracadouros na nossa orla? Não dá. Banheiros decentes nas praias? É difícil. Respeitar a faixa de pedestres, usar a bicicleta, pegar o ônibus e com isso exigir um serviço decente, não andar com a moto entre as faixas? Vamos ver.
Negligência é, junto com a imprudência e com a imperícia, um dos três pilares da culpa. Então, por lógica, a culpa do que acontece é toda nossa, de toda a sociedade.

Responsabilizar apenas os governantes é fácil.
Nunca, repito, nunca, trabalhando com eles, em várias instâncias, vi um só governante dizendo, “hihihi (risadinha do Nilo de Avenida Brasil), vamos ferrar a população, eles merecem viver lascados, mesmo, hihihi”.
Eles são o reflexo. O rosto no espelho é o nosso.

Assim, nossas soberba, saudosismo e negligência catalisam uma danosa falta de ousadia, de criar o novo, o difícil, de ir buscar a grana que a gente não tem, de pedir ajuda, de fazer vaquinha, de xingar o juiz, de se mexer.
Louvo a quem empreendeu a Protur (Sergio Rego Monteiro, Fernando Marcondes de Matos, Mauro Fiuza, entre outros), a Fundação Pro-Florianópolis (Zeno Vieira, entre outros) e a hoje atuante FloripAmanhã (com a contribuição mais que interessante do Guga), que torço muito para que consolide seus esforços. Esse é o espírito.

Outras cidades já operaram essa transição, da soberba para consciência e daí para o orgulho legítimo.
Do saudosismo atrasista (não sei se a palavra existe em português, em espanhol existe), para a preservação e o tributo ao passado que enobrece.
Da negligência letárgica para um espírito de ação coordenada e cidadã, que envolve e impacta todo mundo.

Pode ser que assim, com os imensos valores pessoais, técnicos, filosóficos e intelectuais que temos na cidade, mas que não percebo integrados em uma real vibe de mudança, possamos criar uma cidade muito legal para a gente viver. Porque só uma cidade muito boa para quem vive nela poderá ser interessante para turistas, gente de negócios, investidores.
New York reduziu uma criminalidade sufocante com o programa Tolerância Zero.
Barcelona aproveitou as Olimpíadas e se orientou para um modelo contemporâneo de viver em cidade.
Lisboa, depois da Expo de 1998 se transformou barbaramente.
Panamá é um canteiro de obras, está recuperando o Casco Antiguo (patrimônio da humanidade pela Unesco).
Podemos aprender, copiar e melhorar com o que essa turma fez.

Voltando ao Cartola, “ainda é cedo, amor”. E, contrariando a lógica, se nossos sonhos não forem mesquinhos, dá tempo de transformar o abismo metafórico, de uma herança cínica em um exemplo para todo o mundo e um legado para o futuro.

FONTE: Acontecendo Aqui

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